Fernanda Dias retratou detalhes de Orizona e Goiás Velho, ambas em GoiásFoto: Fernanda Dias/Divulgação |
O campo brasileiro, assim como o meio urbano, é formado de diferentes costumes e vivências do norte ao sul do País. Para descobrir e documentar essas diferentes identidades, cinco profissionais foram convidados a lançar suas lentes para dez localidades do interior de nove estados brasileiros. As imagens captadas pelos jovens fotógrafos foram reunidas no livro “Identidades Rurais”. A curadoria ficou sob a coordenação do fotógrafo e cientista social Gustavo Stephan, que foi criado em Niterói depois que a sua família deixou o interior de Minas Gerais. O lançamento será nesta quinta-feira (2), das 10h às 17h, no Museu de Arte do Rio (MAR), com uma exposição de fotos.
A publicação celebra os 15 anos do Instituto Souza Cruz, organização sem fins lucrativos que tem suas ações voltadas para a agricultura familiar sustentável através da formação de jovens empreendedores rurais.
Mineiro de Juiz de Fora, Gustavo Stephan se considera niteroiense de coração. Formado em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense (UFF), em 2004 começou a trabalhar no Centro de Desenvolvimento do Jovem Rural (Cedejor), que, na época, era vinculado ao Instituto Souza Cruz. A partir dos trabalhos que envolvem a temática rural, o fotógrafo foi convidado para fazer parte da comemoração dos 15 anos do instituto ao desenvolver um livro de fotografia.
“Eu tive essa ideia de que seria interessante levar esses jovens fotógrafos da cidade para fotografar o campo. Porque a relação do campo com a cidade parece distante, mas não é. A falta de oportunidade no campo, no interior, fez com que as pessoas buscassem as cidades. Com a urbanização do Brasil, que começa nos anos 1940 e 1950, houve uma migração do campo para as cidades”, explica Gustavo , que conta que muitas das pessoas que migraram do campo para a cidade, como comerciantes e filhos de fazendeiro, vieram mais preparados que os outros trabalhadores rurais.
“Muitas pessoas não tiveram oportunidade e chegaram na cidade despreparadas. Tanto que os projetos educativos no campo não são para você manter o jovem por lá, mas para que o jovem vá para a cidade com uma outra condição. Não é para o jovem ter a obrigação de ficar no campo, ele pode fazer o que ele quiser”, defende.
Para a idealização do livro, Gustavo convidou os fotógrafos AF Rodrigues, Fábio Teixeira, Fernanda Dias, Ratão Diniz e Valda Nogueira. Cada um deles ficou de 7 a 10 dias em duas localidades rurais de nove estados. AF foi para o Rio de Janeiro e Paraná, Fábio para Santa Catarina e Acre, Fernanda para Goiás, Ratão para o Amazonas e Pernambuco, e Valda para o Espírito Santo e Bahia.
“O que me fez chamá-los não foi essa relação direta com o campo, que eu sabia que viria naturalmente. Acaba que a família de todos os fotógrafos, quase todo mundo no Brasil, se não na segunda, terceira ou quarta geração, tem algum antepassado no campo”, explica.
No processo de curadoria, Gustavo conta que tentou diversificar ao máximo as imagens escolhidas buscando aquelas que retratassem o Brasil culturalmente, além de também desmistificar a figura do jovem no campo.
“É importante mostrar que o jovem do interior também está conectado com o que está acontecendo no mundo. Esses jovens não são tão diferentes como antigamente. As coisas estão ficando mais iguais. O projeto sempre teve esse cuidado de não mostrar o campo como um lugar de atraso, mas, sim, um campo que pensa, um campo que tem cultura. Isso tudo fez com que eu escolhesse as fotos, tendo o cuidado por se tratar de um livro de 150 imagens. É mostrar o jovem que tem a sua cultura, que está conectado no mundo, antenado nas coisas, que tem uma visão política, que está num processo de transformação do Brasil, buscando um País melhor”, observa.
Formado pela Escola de Fotógrafos Populares/Imagens do Povo do Observatório de Favelas, Ratão Diniz é reconhecido por seu inúmeros trabalhos que documentam a beleza das favelas. Atualmente está focado em documentar de forma independente o interior do Brasil. Convidado a participar do projeto, Ratão conheceu duas localidades: Boa Vista dos Ramos, no Amazonas, e a Zona da Mata e parte do agreste do estado de Pernambuco.
“Quando recebi a proposta de ir para o Amazonas falaram ‘você vai ter que viajar 16h num barco grande, depois 4h numa lancha, depois mais 2h em outra. Eu fiquei ‘amarradão’. É isso que eu quis para mim, conhecer os lugares, conhecer pessoas, conhecer histórias e poder contá-las”, declara o fotógrafo, que também tem o interior nas suas raízes, já que é filho de pais nordestinos – sua mãe é do Rio Grande do Norte e seu pai da Paraíba.
“Meus pais são dessa galera que veio para o Rio de Janeiro em busca de uma melhor qualidade de vida. Poder fotografar essa região do Brasil é poder me encontrar com as minhas raízes, com todo o meu histórico”, celebra ele, que acrescenta. “Estar saindo desse espaço urbano, que é a favela, e ir para o interior parece ser muito oposto. Mas o Rio, as favelas, as comunidades, trazem consigo os seus costumes, a sua cultura. Enfim, essa cultura em que se visita uma casa na favela e toma um café é muito comum no interior do Brasil”.
Para Ratão, a experiência permitiu que ele conhecesse o trabalho dos pequenos produtores e o respeito que eles têm com a terra.
“A agricultura, particularmente a familiar, é a que nos alimenta e não o agronegócio. Isso é que tem que ser fortalecido. Além disso, tem a questão do respeito à terra, ao tempo. Por exemplo, eu cheguei no período de estiagem no Amazonas. Eu não consegui acompanhar tanto esse universo de produção, de campo. Fiquei em uma comunidade ribeirinha. Os rios estavam secando e, nessa época, eles não vivem tanto da terra, mas sim da pesca. Eles também estão deixando de criar gados para criar abelhas porque é prejudicial, querendo ou não, para a terra na questão do desmatamento da floresta, e as comunidades estão com essa consciência. É uma outra onda, além da questão dos agrotóxicos, que eles não usam”, cita.
Outra participante da documentação do campo brasileiro é a fotógrafa Fernanda Dias. Nascida no Rio de Janeiro, mas criada no distrito de Barão de Juparanã, em Valença, a fotógrafa, que retornou à capital e hoje mora na Lapa, sempre esteve ligada às questões rurais devido às suas raízes. Depois de iniciar a sua trajetória no fotojornalismo, ela começou a fazer um trabalho independente chamado de “Raízes do Vale”, em que retrata a cultura popular na região do Vale do Café.
“Esse convite foi mais uma oportunidade para eu conhecer uma outra parte do interior, pois eu só conhecia o do Rio”, ressalta.
Para conhecer esse outro interior, Fernanda ficou uma semana em cada uma das duas cidades de Goiás, Orizona e Goiás Velho, com cerca de 275km de distância.
“As cidades que eu visitei são totalmente diferentes uma da outra. A agricultura familiar é muito forte e totalmente diferente. Foi uma experiência muito rica porque eu sabia que ia encontrar alguma diferença, mas lá dentro é gritante. Cada um que eu visitei, cada coisa que eu passei, trouxe um pouquinho comigo”, conta ela, que acrescenta. “Para documentar, buscar resgatar aquela história ali, e começar a fotografar; a gente bate-papo, dorme na casa da pessoa. E o pessoal do interior é muito cativo, acolhe as outras pessoas”.
Apesar da sua vivência no meio rural do interior do Rio, a carioca ainda revela que a relação das famílias que visitou com o alimento e os bens de consumo é muito diferente do Rio de Janeiro.
“O que eu pude ver, comparando com aqui, é que a gente não valoriza quase nada. Lá, eles produzem e dependem daquilo que produzem. Mas aqui, por mais que tenha gente passando fome, ninguém pensa, se você tiver que descartar o alimento, você vai descartar. Lá não. Eu estava me alimentando, já satisfeita e disseram: ‘Não, não pode sobrar comida no prato’. São valores que a gente, aqui, pelo menos eu valorizo, mas não tanto quanto eles. A terra para eles está em primeiro lugar, é a maior riqueza deles”, ressalta.
Para Fernanda, o amor e o respeito entre as pessoas do meio rural foram marcantes na experiência de documentação, sendo o afeto muito presente o tempo todo.
“O filho chega para o pai e fala: ‘bença, pai’. Depois, beija a mão dele. Isso era uma coisa que eu via no tempo da minha mãe, chegar e dar um beijo na testa do seu pai, pegar na mão e pedir ‘bença, mãe, bença, pai’. Ou ‘boa noite, pai’ e vai lá dar um afeto. Isso é muito forte e me marcou muito. Essa união e esse respeito entre as pessoas e as famílias”, finaliza.
O Museu de Arte do Rio (MAR) fica na Praça Mauá, 5, no Centro do Rio de Janeiro. Lançamento quinta-feira (2), das 10h às 17h. Entrada franca.
Fonte: http://www.ofluminense.com.br/pt-br/cultura/pluralidade-no-cora%C3%A7%C3%A3o-do-brasil